Em busca do Marajó - reminiscências de "Argila" (Humberto Mauro, 1942)

         Desde muito jovem, tinha curiosidade pela Ilha de Marajó e não sei explicar por quê. Vinham-me imagens de búfalos, rios, talvez alguma coisa de arte marajoara. Parecia-me um lugar muito, muito distante (e realmente é para quem mora no Sudeste do Brasil). Em 1994, tive a oportunidade de morar um mês em Oriximiná, cidade às margens do rio Trombetas, no Pará, mas que ficava bem longe da capital Belém e do Marajó. Somente muitos anos depois, em setembro de 2019, voltei ao Pará por ocasião de um congresso acadêmico em Belém e tentei tornar possível a ida ao Marajó. Curioso que, no início de 2019, ao preparar um curso sobre Villa-Lobos, vi o filme "Argila" (1942) de Humberto Mauro, cujo tema é justamente a cerâmica marajoara. Este mapa da ilha e do estado do Pará aparece no próprio filme:



            Inicialmente em Belém e antes do congresso, fui visitar o Museu do Forte do Presépio e lá me deparei com uma sala dedicada às culturas indígenas do Marajó e outras do estado do Pará.

Forte do Presépio, Belém, setembro de 2019


            No museu, há a informação de que os povos que viveram no Marajó produziram cerâmica com características diversas desde pelo menos 1500 a.C., mas a "Fase Marajoara", do século VI ao século XIII, foi um ponto alto, em que se encontram desenhos geométricos, figuras humanas e de animais na decoração. No filme de Humberto Mauro, a protagonista Luciana (interpretada pela também produtora do filme, Carmen Santos), mulher da alta sociedade do Rio de Janeiro, resolve patrocinar o artesão Gilberto (Celso Guimarães), que trabalha com cerâmica com motivos marajoaras. Há a inclusão no filme de uma palestra do antropólogo Roquette Pinto (no Museu Nacional do Rio de Janeiro, que teve grande parte do seu acervo destruído por um incêndio há cerca de um ano antes de minha visita a Belém, em 02/09/2018). Várias imagens que incluo aqui, alternando-as com as de objetos do Museu do Forte do Presépio, são dessa parte do filme com a palestra.

Luciana (Carmen Santos) ao lado de um vaso produzido pelo artesão Gilberto no filme "Argila", de Humberto Mauro (1942)

Para ver o filme:


Urnas no museu de Belém e na palestra de Roquette Pinto do filme
















            "Tangas" expostas no museu e na palestra do filme:



Estatuetas tipo "Maracá" no museu e na palestra do filme:

Estatuetas tipo "Maracá" - Museu do Forte do Presépio





Tigelas com motivos marajoaras e desenhos de animais - Museu do Forte do Presépio


            No museu, encontramos também a exposição de várias "muiraquitãs". Na informação do museu, essas pedras verdes foram associadas por arqueólogos à produção de povos indígenas da cultura Tapajós-Trombetas e a matéria prima fica no território dos rios Nhamundá-Trombetas, mais próximo à Guiana, na região onde vivi em 1994. Não pude resistir à foto pensando em outro filme brasileiro, "Macunaíma" (Joaquim Pedro de Andrade, 1969), por sua vez, baseado no livro homônimo de Mário de Andrade. No livro e no filme, a muiraquitã é um amuleto da amada Ci de Macunaíma. Depois da morte de Ci, a muiraquitã vai parar nas mãos do "gigante" Venceslau Pietro Pietra e Macunaíma faz de tudo para recuperá-la.

Muiraquitãs - Museu do Forte do Presépio

Ci (Dina Sfat), com a muiraquitã no pescoço.

Pietro Pietra (Jardel Filho) com a muiraquitã no pescoço (acima e ao lado). Na imagem ao lado, Macunaíma (Paulo José, de costas), vai à casa dele fantasiado de mulher para tentar recuperar o amuleto. A sequência é no salão Assírius do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, mas deixemos para outra ocasião essa nova referência geográfica,



            

            Terminado o congresso acadêmico no dia 07/09/2019, tinha ainda a tarde daquele sábado, o domingo e parte da segunda-feira para ir à ilha de Marajó. Para a minha surpresa, domingo era um péssimo dia para se estar em Marajó como turista, já que não há aerobarcos para chegar à ilha e quase tudo fecha, inclusive os ateliês. Optei por um barco mais lento que saía na tarde do sábado e fiquei a primeira noite na cidade de Salvaterra, onde já pude entrar no rio-mar, ver búfalos num hotel (não coloco as fotos aqui, pois eram búfalos para "passeios com turistas") e um desfile de 7 de setembro. No dia seguinte, peguei a barca para atravessar de Salvaterra a Soure, a cidade mais turística do Marajó, e já fui recebida por alguns búfalos, como esse aqui, mugindo (não era para mim, o bicho estava numa conversa ou briga com outro búfalo e um cavalo)


Búfalo em Soure, Marajó, 08/09/2019


        Indo para a pousada, reparei que várias construções utilizavam os motivos marajoaras como decoração.

Prefeitura de Soure com motivos marajoaras


Casa em Soure com motivos marajoaras

            Deixei as coisas na pousada e fui em direção à Praia da Barra Velha, para onde me disseram que levaria uns 40 minutos caminhando. Para a minha sorte, no meio do caminho, encontrei um ateliê aberto. Embora só a parte da lojinha estivesse funcionando, fiquei muito feliz de, ao menos, fotografar as instalações do ateliê onde são feitas as peças. Claro que a minha ideia era encontrar algo semelhante ao "ateliê do Gilberto" do filme "Argila".


Ateliê em Soure, 08/09/2019


Peças para venda na lojinha do ateliê. Há uma "tanga" como as do museu.

            No filme "Argila", depois de patrocinado por Luciana, Gilberto passa a chefiar um ateliê todo dedicado à cerâmica marajoara, com produção também de diversas peças:



                Instalações do ateliê em Soure:

Parte das instalações do ateliê. O Gilberto do filme não poderia estar fazendo seus vasos aí?










            Mas o desejo de ver e fotografar os míticos búfalos também continuou. Vi diversos animais soltos, para além daqueles mais parrudos que são oferecidos a turistas para passeio nas praias.




            Na praia da Barra Velha, combinei com um motoqueiro (a falta de transporte é um problema; amigos que foram juntos em outro dia alugaram um taxi, mas não tinha como bancar sozinha) para me levar e buscar na Praia de Pesqueiro, umas das mais famosas da região. Na praia, também havia uma construção com os motivos marajoaras:


       E mesmo nesse tronco-instalação:

"Faça aqui sua Art.!"

            No entanto, muito além de arte marajoara, praias e búfalos, o que acabou sendo uma surpresa agradável da ida a Marajó foram dois desfiles em comemoração à data da independência do Brasil: um no próprio dia sete de setembro, em Salvaterra, outro em Soure, no dia seguinte. Há desfiles em todo o Brasil nesse feriado e houve um na manhã de 07/09/19 em Belém, enquanto estava numa reunião do congresso. Mas, na Ilha do Marajó, a cidade toda se reunia para ver, havia um clima mais de festa do interior, passavam várias agremiações que tocavam e faziam suas coreografias para a plateia.
               Esses desfiles me lembraram o trecho de "O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro" (Glauber Rocha, 1969), em que vemos uma banda desfilar no vilarejo de Milagres, na Bahia (Nordeste do Brasil), em que o filme foi rodado.

Bandas no desfile de Salvaterra, 07/09/2019





Desfile de Independência em "O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro" (na última foto da sequência, vemos os atores Maurício do Valle e Hugo Carvana à esquerda, acompanhando o desfile)





Bandas no desfile de Soure, 8/09/2019 e o do filme "O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro"


         :



Despeço-me deixando um pequeno vídeo para vermos e ouvirmos a performance da banda de Soure das fotos.




Comentários

  1. Muito obrigada!
    O filme do Humberto Mauro também é muito interessante sob vários aspectos.

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