Arredores de Paris: em busca de um filme de Jacques Demy, com uma piscadela de olhos de Agnès Varda

Em 2017, já me encaminhando para o final de uma pesquisa sobre cinema moderno francês, faltavam alguns poucos filmes para assistir, de difícil acesso. Um deles era "La mère et l´enfant" ("A mãe e a criança") documentário curta-metragem de Jacques Demy de 1959. Descobri que havia uma cópia no Centre National du Cinéma et de l´Image Animée (CNC), localizado em Bois d´Arcy, vilarejo na periferia oeste de Paris. Assim, durante uma viagem, em fevereiro de 2017, pude, finalmente, ver o filme no CNC. 

Saindo de Paris, peguei o RER C (o RER é um sistema ferroviário que faz a ligação de Paris a localidades nos arredores) e deveria saltar na estação de Fontenay le Fleury, próxima a Bois d´Arcy. Porém, o RER C enfrentava na época várias interrupções da linha, saltei em Saint Cyr, mas perdi o ônibus para Fontenay. Como me disseram que o tempo de caminhada seria de 20 minutos, praticamente o mesmo tempo de espera do ônibus, resolvi ir andando.

Embora estivesse carregando o peso do meu notebook e a caminhada não fosse tão fácil no frio de inverno, eis que, de repente, deparo-me com este cinema, com o sugestivo nome "Les yeux d´Elsa":

Foto de 24 de fevereiro de 2017

Mas, o que tem a ver "Les yeux d´Elsa" ("Os olhos de Elsa") com Jacques Demy? Pois "Les yeux d´Elsa" é o título de um livro de poemas de Louis Aragon dedicado a sua mulher, a também poetisa Elsa Triolet, assunto do curta-metragem de Agnès Varda (cineasta e esposa de Jacques Demy), "Elsa la rose" (1966).

Aragon, no filme de Varda, escrevendo o nome de Elsa










Os olhos de Elsa no filme de Varda










 

(Para ver o filme inteiro: https://vimeo.com/97016643)

Talvez essas associações pareçam fortuitas para alguns, mas, para quem conhece a obra de Varda, fazem todo o sentido até mesmo pelas acrobacias de sentidos, próprias de associações surrealistas costumeiramente feitas por Varda em seus filmes, como observado por vários estudiosos (para quem quiser saber mais sobre isso, indico um artigo ao final, em que reúno essas referências). Muitas vezes, Varda lança mão de elementos escritos presentes na paisagem (ou criados por ela), como placas de trânsito, nomes de ruas, de estabelecimentos, como podemos ver no filme "As duas faces da felicidade" ("Le bonheur", 1965).

O próprio nome "Fontenay" da estação já fazia uma conexão com esse filme de Varda, pois o personagem principal mora em Fontenay. Seria uma associação surrealista criada pelo destino que eu tivesse que encontrar o filme de Jacques Demy num local próximo à cidade de Fontenay do filme de Varda?

Estação de trem de Fontenay le Fleury, foto de 24 de fevereiro de 2017

Mapa mostrando a estação de St. Cyr, o cinema "Les Yeux d´Elsa" e o caminho até a estação de Fontenay le Fleury

Na época, pensei assim: era mais uma manifestação de Varda nesse caminho (estranhamente, pois foi por causa de Agnès Varda que esse filme de Jacques Demy ficou quase inacessível, sendo excluído propositadamente da coleção em DVD de obras completas de Demy por decisão da viúva, detentora dos direitos da obra do cineasta).
No entanto, descubro que há várias Fontenays nos arredores de Paris: além da "le Fleury", há, por exemplo, Fontenay-sous-Bois, localizada próxima a Vincennes, no extremo oposto de onde eu estava, a leste de Paris. No filme, o carpinteiro François (Jean-Claude Drouot), casado e com dois filhos (o morador de Fontenay), começa a ter um caso com uma funcionária do correio que conhece quando estava trabalhando em Vincennes. Assim que se conhecem, Émilie (Marie-France Boyer) diz a François que está coincidentemente de mudança para Fontenay e tem receio de perder a vida mais agitada de Vincennes. Seria uma mudança de um extremo a outro de Paris? Parece-nos que não, mas que a Fontenay do filme era realmente a localidade vizinha a Vincennes, até mesmo pela paisagem mostrada no filme, com edifícios ao longe, algo que não vi nos arredores da estação de Fontenay le Fleury.

Fontenay-sous-Bois e proximidade com Vincennes, onde fica o Château de Vincennes. Observar também a proximidade com a "Porte Dorée", também marc,ada, que mencionarei a seguir.

Logo antes do encontro subsequente de François com Émilie em "Le bonheur", Varda nos mostra uma imagem da estátua dourada de mulher localizada bem próxima à estação de metrô Porte Dorée, também ali nas proximidades. Numa de suas associações de imagens, Varda mostra, logo antes dela, uma estátua de homem (não sei onde fica), também dourada, indicando o romance próximo.

Filme Le Bonheur


Estátua de mulher no filme Le Bonheur


Pois, em fevereiro de 2012, época em que morei em Paris por ocasião de um período de pesquisa do meu doutorado, na saída do Bois de Vincennes (bosque lindíssimo da região), fotografei essa estátua pensando no filme de Varda.

Foto de fevereiro de 2012


No filme, nesse segundo encontro em Vincennes, Émilie vai com François a um café chamado Le Château, em alusão ao Castelo de Vincennes. A seguir, François convida Émilie para um passeio e cogitam irem ao Castelo. Vemos na foto abaixo, um plano da imaginação dos dois diante do castelo, durante a conversa.



Lembro que fui ao Castelo de Vincennes numa viagem bem anterior, talvez 1997 ou mesmo na primeira viagem a Paris em 1995, mas deixo aqui imagens mais recentes, de 15 de abril de 2012, por ocasião de um comício pré-eleição do então candidato à presidência François Hollande (outro François!).





























                                                               

15 de abril de 2012, próximo do começo do comício de François Hollande em frente ao Castelo de Vincennes

Mas o François do filme não vai com Émilie para a frente do castelo. Passeia com ela numa alameda e depois, os dois se sentam num banco, aparentemente, na parte lateral do Castelo.

Ao final do encontro, numa de suas brincadeiras com palavras escritas, Varda coloca uma imagem supostamente de um outdoor com a inscrição "j´aime" ("eu amo").

No nosso passeio ao comício de Hollande, eu e meu companheiro caminhamos também por uma alameda, cheia de gente se dirigindo ao comício. Fotos de 15 de abril de 2012

                                                                
Seria aqui a parte do Castelo onde estão François e Émilie no filme?

Mas voltemos desse longo desvio ao caminho para encontrar o filme de Jacques Demy no CNC. Chegando à estação de Fontenay-le-Fleury, tenho que atravessar um verdadeiro bosque (o Bois d´Arcy do nome não é por acaso).

Bois d´Arcy, foto de 24 de fevereiro de 2017


Mesmo já tendo chegado à conclusão de que a Fontenay do filme "Le bonheur" de Varda provavelmente fica do outro lado da cidade, não consigo deixar de pensar nesse bosque para onde o personagem François costuma ir com a família (a estação é o outono)


Mas chega de desvios acrobáticos! Chego finalmente ao CNC:

Foto de 24 de fevereiro de 2017



Termino aqui com algumas imagens do filme "A mãe e a criança" de Jacques Demy:


Para quem quiser ler mais:

Alvim, Luíza. Música preexistente, leitmotivs e retornos no cinema de Jacques Demy dos anos 1950 e 1960. Revista Contemporânea (UFBA. ONLINE). , v.18, n.1, p.7 - 29, 2020  [artigo em que analiso a música de "A mãe e a criança"]
:https://periodicos.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/30591 

Alvim, Luíza. Voz over e colagens musicais em documentários ensaísticos de Chris Marker e Agnès Varda da época da Nouvelle Vague. DOC ON-LINE: REVISTA DIGITAL DE CINEMA DOCUMENTARIO. , v.24, p.60 - 79, 2018. [análise de "Elsa la rose"]
http://ojs.labcom-ifp.ubi.pt/index.php/doc/article/view/437

Alvim, Luíza. Beleza, star system e uso da música associada a personagens femininas em filmes de ficção de Agnès Varda da Nouvelle Vague In: Lusvarghi, L.; Alvim, L.; Nascimento, G. (orgs.). Cinema, representação e relações de gênero.1 ed.: E-Galáxia, 2018.. [análise de "Le bonheur"]





Comentários

  1. Querida sobrinha !
    Adorei seu Blog e estou compartilhando com um grupo seleto de pessoas, apreciadoras da Arte, da pesquisa e experiências tão primorosas como as que você nos presenteia.
    Parabéns e sucesso!

    ResponderExcluir
  2. Que bom e obrigada! Espero que gostem!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe seu comentário. Pode ser em português, inglês, francês, alemão, espanhol, italiano ou qualquer outra língua

Postagens mais visitadas deste blog

Em busca da geografia real/imaginada de "Em trânsito" em Marseille - parte 1

Em busca do Marajó - reminiscências de "Argila" (Humberto Mauro, 1942)

Bucareste vista a partir de dois filmes