Em busca da geografia real/imaginada de "Em trânsito" em Marseille - parte 3 (final)

 Nas partes 1 e 2 desta Cineviagem, coloquei fotos da minha busca por lugares do livro "Em trânsito" (de Anna Seghers) em Marseille, no dia 24 de fevereiro de 2020, junto a fotos pesquisadas no Google Street View e imagens e trechos do filme “Em trânsito” (2018), adaptação cinematográfica de Christian Petzold.

Resumindo a história, trata-se de um fugitivo do Nazismo que sai de Paris para Marseille, assume a identidade de um escritor e se apaixona pela mulher dele (Marie). Esta vive com um médico e os dois, assim como os outros refugiados europeus, estão à busca de um navio que os leve embora para o continente americano. No filme, Petzold coloca a história no tempo presente das cidades, porém, sem adaptar as contingências históricas do livro, dando a sensação de termos ali dois tempos.

Como escrevi nas partes 1 e 2, o tempo foi apertado, pois estive em Marseille apenas aproveitando menos de 2 horas de intervalo de troca de trens, então, não deu para achar todos os lugares. Porém, recorrendo aos meus arquivos fotográficos de duas viagens anteriores a Marseille (julho de 2012 e julho de 2014), tentei completar as lacunas, além da ajuda do Google Maps e Google Street View.

Foi com espanto que descobri que tinha uma foto da Préfecture (órgão administrativo, que traduzi como "prefeitura de polícia", pois tem mais a ver com visto de estrangeiros). Provavelmente, naquele 14 de julho de 2012 (feriado nacional na França), não tinha ideia do que estava fotografando....

Seguem as fotos de 2020, 2012 e 2014, junto com indicações do Google Maps, Google Street View e trechos do livro traduzidos por mim do alemão.

 Velho Porto (Vieux Port) de Marseille, foto de julho de 2014
 "Cheguei contente ao Velho Porto – na   mesma hora de hoje. Por causa da guerra, ele estava quase deserto – como agora. Como agora, deslizavam devagar as barcas sob a ponte do trem. No entanto, hoje me pareceu como se eu tivesse visto tudo pela primeira vez. As armações dos barcos cortavam as grandes superfícies nuas das casas antigas – como agora."(p.55, 2, III)

Sol se pondo atrás do Fort Saint-Nicholas, foto de julho/2012
 "O sol se punha atrás do forte Saint-Nicholas. Pensei, da maneira comum a pessoas muito jovens, que tudo o que aconteceu comigo me trouxe até aqui e que por isso foi bom." (p.55, 2, III)
      (O local da foto é outro em relação ao que está descrito no livro, mas só tinha essa foto)


  "Perguntei pela rua du Chevalier Roux. Ali morava o primo Georg Binnet. As pessoas se espremiam nos mercados e nas feiras de rua. Já estava escuro nessas cavernas de becos, o que fazia brilhar mais ainda as frutas em tons de vermelho e dourado. Senti um cheiro que nunca tinha sentido na vida. Procurei a fruta de onde ele vinha, não a encontrei. Sentei-me para descansar um pouco na beira da fonte do bairro corso, com a mala sobre os joelhos. Então, subi a escada de pedra, que eu ainda não sabia para onde levava.” (p.55, 2, III)

A foto, de julho de 2012, é no bairro descrito no livro. Teria sido essa escada a que ele subiu?

     No filme de Petzold, temos essa imagem:


 Becos no local da descrição anterior do livro. Foto de julho de 2012.

    Na verdade, não há rua do Chevalier Roux, mas sim, du Chevalier Roze, como se pode ver no mapa. Pela descrição do livro, parece ser essa mesma.



     "Subi de volta ao bairro corso. Nesse meio tempo, tinha ficado mais calmo. Os mercados foram arrumados. Achei a rua do Chevalier Roux.” (p.56, 2, III)

No livro, quem mora na rua do Chevalier Roux/Roze é um contato do protagonista, primo de uma ex-namorada, chamado Georg Binnet, cujo nome, Georg, passa ao protagonista (sem nome no livro) do filme. Georg Binnet tem uma companheira, imigrante da ilha da Madagascar, antiga colônia francesa, que tem um filho pré-adolescente, por quem o protagonista desenvolve grande afeição. Esses laços são mantidos no filme, porém, ao invés da proveniência de Madagascar, filho e mãe são maghrebinos (do Norte da África, também ex-colônias francesas), contingente de grande parte da população da Marseille atual. No filme, percebemos que a residência de mãe e filho é bem distante da rua Chevalier Roux/Roze: fica no prédio localizado em 8, boulevard de la Verreria (ver foto de filme e mapas abaixo).




   Boulevard de la Verrerie, Marseille, Google Street View, captura de julho de 2020



      Imagem do filme. Menino encontra o protagonista em frente ao seu prédio

   Foto de julho de 2012
"O mar estava abaixo de mim. Os braços do farol sobre a Corniche e as ilhas estavam ainda sem brilho no crepúsculo."(p.56, 2, III)














                           
Foto de julho de 2014. 
Aqui, vemos o início de uma parte toda renovada de Marseille, ao lado da parte antiga das descrições anteriores, onde houve a construção de vários museus, em que se destaca a sua arquitetura moderna, e, ao mesmo tempo, uma preocupação de harmonia com as construções antigas.

Foto de julho de 2014
"Como eu tinha odiado o mar ali nas docas. Tinha me parecido impiedoso no seu inacessível e desumano deserto. Agora, porém, depois que eu sofri tudo no meu longo caminho pela terra despedaçada e manchada, não havia para mim maior consolo que justamente esse vazio e deserto desumano, na sua ausência de rastros, imaculado." (p.56, 2, III)

     No filme, essa parte mais moderna de Marseille é bem explorada na sequência em que o protagonista encontra a "mulher dos cachorros", personagem que, como os outros, tentava fugir para a América e que é mantida no livro. Seguem três imagens do filme.





            Voltando às fotos e aos trechos do livro:

Foto do Forte Saint-Nicholas, julho de 2012.
 "O Mistral tinha parado de ventar. As estrelas já brilhavam nos terraços do Forte Saint-Nicholas, que fica em frente à abadia Saint-Victor.”(p.128, 4, VI)

Abadia Saint-Victor, foto de julho de 2012


 Foto de 24 de fevereiro de 2020, bem perto da rua Canebière
"Nós, porém, o Legionário e eu, com muitas horas de tempo livre a preencher, andávamos ao longo da Cannebière de Café em Café e, depois, na rue Saint-Férreol.” (p.305, 9, V)

O início da rue Saint-Férreol, perto da Canebière. Foto de 24 de fevereiro de 2020.

Local das fotos anteriores. A rue Saint-Ferréol continua até o local da Préfecture, na próxima foto.

    Préfecture Marseille, foto de 14 de julho de 2012.

"O Café Saint-Férreol se encheu em parte com os visitantes já despachados do consulado americano, em parte com os que esperavam pelo visto de saída, que se fortaleciam antes de subirem à prefeitura de polícia. Teria preferido trocar para um café no Quai des Belges, onde ao menos se podia ver o porto. Fiquei sentado como que paralisado.” (p.173, 5, X)

Mapa mostrando a proximidade da Préfecture com o consulado americano e a relação de distância com o Velho Porto.

A Préfecture fica realmente bem perto do consulado americano, que não deve ter mudado de local desde os anos 1940.

“Esperei por Marie no Café Saint-Férreol. Era apenas 10 horas da manhã. O Café, porém, já estava cheio de pessoas que queriam um lugar em frente à prefeitura de polícia ou para o consulado americano.” (p.310, 9, VI)


      Vista para o Quai do Port. Foto de julho de 2012.
Marie falando ao protagonista sobre o suposto ex-marido:
"O corso o viu na agência de viagens e mais tarde num Café no Quai des Belges. Ele o viu também num pequeno Café no Quai du Port. É que eu chego sempre tarde demais.” (p.176, 5, X).

Quai du Port. Foto de julho de 2014.
Protagonista na agência de viagens, procurando o “coiote” (que ajudaria a transportar pessoas escondido para fora de Marseille):
“O corso se dirigiu a mim imediatamente, embora bastante gente agitada sofresse atrás do balcão. ‘Ele está no café árabe ou no Quai du Port”. (p.318, 9, VIII)


  Foto de julho de 2014.
“Quando o Mistral ventava forte demais, eu me sentava aqui, na Pizzaria, nessa mesa. Na época, eu ainda me admirava que uma Pizza não tivesse sabor doce, mas sim de pimenta, azeitonas e anchovas. [...]. Eu só tinha uma pergunta difícil para resolver na vida: deveria me sentar no lugar onde o senhor está agora, com o rosto para o porto diante de mim, ou no lugar em que agora estou sentado, diante do forno aberto? Pois ambos têm suas vantagens. Eu poderia olhar por horas as casas brancas do outro lado do velho porto, atrás dos mastros dos barcos de pesca sob o céu noturno. Poderia também observar por horas o modo como o cozinheiro batia e amassava a massa, como o seu braço mergulhava no forno no qual se jogara lenha fresca. Então, eu subia para a casa dos Binnets, eles moravam só a cinco minutos dali.” (p.82, 1, IV)

Confirmei no google maps que a rue du Chevalier Roze fica a 4 minutos da esquina da rue de la République com o Quai du Port. Foi só aí que tive uma ideia melhor da localização da tal pizzaria do livro (no filme, os dois lugares são fundidos num só, ver a parte 1 dessa Cineviagem). Quando li a primeira vez, fiquei meio confusa.

Foto de 24 de fevereiro de 2020.



Quando o médico convida o protagonista para a Pizzaria pela primeira vez (e quando ele vai ser apresentado a Marie, descobrindo que ela é a namorada do médico), saindo dos Binnets
:
“E, na esquina da Rue de la République, ele me convidou para jantar. [...] Nós entramos na Pizzaria. Sentei-me com o rosto voltado para a janela aberta.” (p.157, 5, VI)

 A foto está tremida, mas vê-se a indicação "Rue de la Rép" e a brasserie da esquina com o Quai du Port. 
Seria ela a Pizzaria do livro?

A brasserie no número 2 da rue de la République, esquina com Quai du Port. Google view, captura de maio de 2019.


Mostrando outro ângulo da brasserie no número 2 da rue de la République, esquina com Quai du Port. Google view, captura de maio de 2019.


Vista do n.4, Quai du Port, possível vista da pizzaria do livro. Forte Saint-Nicholas bem ao longe. Google view, captura de maio de 2019.

 Vista a partir do Quai du Port. Vista da pizzaria? Foto de julho de 2014.

“O senhor não acha esse assunto chato? Não está se aborrecendo? Ele me chateia. Posso convidá-lo para sentar-se comigo? No entanto, não tenho dinheiro para um jantar propriamente dito. Só para um copo de vinho rosé e um pedaço de pizza. Sente-se, por favor. Qual a vista prefere? Se for a pizza assando no forno, aqui a meu lado; se for o porto antigo, aqui em frente.”

(na primeira página do livro)


Fim












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